Monday, November 03, 2008

Eterna Espera, Volume II

Prelúdio

A noite começou serena, e passaram apenas algumas horas desde o pôr-do-sol até que lhe bateram à porta. Rhaziel não esperava visitas, simplesmente porque raramente as tinha. Para não variar, estava vestido de castanho – era esta a sua cor, aliás, sempre fora desde à séculos, a única coisa que mudou foi o modelo. Durante a idade média talvez o encontrassem de robe, não muito diferente de um monge, mas neste momento era um fato que vestia, um tanto ou quanto grosseiro, de aspecto muito fofo e confortável, pralém de quente – não que isso importe.
Para sua surpresa, era o seu filho que lhe estava à porta. Vendo-os lado a lado ninguém diria que estão relacionados, afinal, o Miguel é simplesmente grande! Alto como uma torre e igualmente encorpado, de cabeça rapada e pêra, vestido de cabedal e botas da tropa, de facto, nada aparenta ter em comum com o seu mestre. Apesar da sua idade – cerca de 480 anos – este era o seu único descendente, o qual estimava como qualquer pai deveria. Miguel ainda era novo naquela vida – ou não-vida, como preferirem – e ainda não estava habituado aos rigores da noite nem à subtileza da imortalidade – todo e qualquer erro o iria atormentar para o resto da vida, e isso poderia significar muito tempo.
Calmo, como sempre, Rhaziel aproveitou para lançar o questionário de rotina, já se passavam uns tempos desde a última visita.
“Fernando!” — É por este nome que Miguel sempre conheceu o seu mestre apesar de a maioria dos mais novos o tratarem pelo outro nome – a alcunha que nunca percebeu donde derivava.

No seu modo expontâneo e meio exaltado, Miguel explicou-lhe o motivo da sua presença ali. Não era coisa boa. Mesmo. Ao ser atacado por um grupo Sabbat, um deles rebelou-se e salvou-lhe a vida, isto, porque pelos vistos já andava a planear escapar-lhes. A parte boa na história é que os dois eliminaram-nos a todos e apesar de baixas Sabbat nunca serem positivas quando não são alvos importantes, pois parece que por cada um que sofre a última morte dois vêm no seu lugar, mas ao menos vão pensar que morreram todos. A parte má era que ele estava lá em baixo.
“Miguel, então deixaste o nosso novo amigo lá em baixo? Não me o vais apresentar?” Espero não me iludir ao achar que ele percebeu a ironia da palavra “amigo”; aqui não existem amigos, existe o clã e é tudo.

Enquanto o Miguel descia, Rhaziel espreitou à sua volta, verificando os seus pertences e se nada de importante estaria à vista. “Antes dois demónios conhecidos do que um desconhecido. Enfim, só me saem duques.”, pensou. A sua casa não era muito diferente da de outros do seu tempo – uma autêntica biblioteca. Conhecimento sempre foi sinónimo de poder, talvez a redenção esteja também no conhecimento. Todas as suas divisões eram preenchidas por estantes do chão ao tecto, e estas, por sua vez, por livros de todos os géneros. Um tema que curiosamente sempre lhe havia interessado era mitologia, escusado dizer que antes da sua morte não acreditava no que se tornou. Apenas duas divisões não se encontravam relativamente vazias: o seu quarto e o hall de entrada. Ao primeiro passo porta a dentro seria inevitável não ficar impressionado, no mínimo, pelas relíquias expostas. O hall encontrava-se decorado por uma pintura enorme, panorâmica, de um nascer-do-Sol, um par de floretes pendurados em cruz, uma outra pintura a preto e branco de uma rapariga e num dos cantos uma armadura do século XV tendo ao seu lado, em frente à porta, um espelho bastante grande. Foi perante esta visão que o novo visitante se deparou, de certo modo deslumbrado, mas nem por isso impressionado, e fizeram-se as apresentações. Augusto da Costa e Silva era o seu nome, um Lasombra – nada que o espelho não tivesse já revelado, e rápidamente também Miguel se apercebeu da inexistência do reflexo do seu amigo. Era a primeira vez que via tal caracteristica, o que até o espantou, já que nunca lhe haviam ensinado todos os pormenores dos outros clãs. Perguntou-se a si mesmo porquê, afinal o seu mestre não o deveria ter feito? Talvez... ou talvez tivesse sido apenas um lapso.
Rhaziel alertou-os – tal como o Augusto provavelmente saberia e bem – que os Sabbat não toleram traidores e, como tal, para terem extra cuidado a partir de então, principalmente por eles não terem qualquer sentido de piedade e não respeitarem as tradições da Camarilla, o que num confronto pode significar graves problemas.
“A situação agrava-se ainda mais, uma vez que os Sabbat estão a atacar Lisboa mais do que nunca e qualquer falha pode demonstrar-se catastrófica, já que com a maioria de Portugal controlado por eles, a perda da capital seria provávelmente o fim da Camarillha no país. Como se não bastasse, certos indíviduos estão-se a aproveitar da desordem causada para tentarem usurpar o lugar do Príncipe Pedro II. Sinceramente, a mim não me faz grande diferença quem reina, apesar de grandes mudanças nunca serem muito bom sinal pois pode trazer surpresas inesperadas e não necessáriamente positivas.

Ah! A Toreador! Pois, o que se passa é que pelo que sei, pelo menos um Ventrue e uma Toreador querem o título para eles. A mim não me faz diferença desde que não seja a Toreador, nunca ouvi relatos de bons Toreadores no poder, e muito menos esta Degenerada. Aviso-vos, não acreditem em nada do que ela e os seus amigos vos contarem, dali não sai nada de bom. O Ventrue é o Dinis, é conhecido por não ter grande herança apesar da idade: quase 1500 anos. Não se deixem enganar, pois apesar de o sangue não lhe ser forte a idade dá-lhe experiência, não o subestimem.” A situação não estava nada bonita, a perda da capital e consequente perda da Camarilla para os Sabbat significaria o fim de todos. Numa altura em que os poderosos se tentam aproveitar da situação para os seus fins, parecendo tererem esquecido tudo o mais, cabe aos pequenos continuar a luta e tentar evitar o que com o tempo parece ser iminente.

Rhaziel havia ficado de se encontrar com um Nosferatu seu amigo junto à Praça do Comércio, na zona dos túneis das obras, para trocar algumas informações, mas optou por enviar o seu filho no seu lugar. Estava na altura de Miguel começar a crescer e entender como eram as coisas agora, como funciona a vida na morte.
“Conhecer toda a gente e não confiar em ninguém, é assim a não-vida”, suspirou.

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